A era do Free to Play?

No final dos anos 80, jogos para PC eram vistos como um simples capricho. Muitos eram feitos de maneira artesanal e distribuídos gratuitamente como freewares, pois não havia mercado para a venda desses produtos. Eram bonitinhos, divertidos, úteis para espairecer a mente, mas não eram a verdadeira finalidade da máquina. O computador era feito para trabalhar. Os jogos "de verdade", criados por grandes empresas, com equipes multidisciplinares e planejamento profissional, eram feitos para consoles de videogames.

Além do hardware dos consoles ter mais potência e custo competitivo em relação aos PCs para realizar tarefas gráficas específicas, os videogames também se aproveitavam da existência das fitas e cartuchos: era possível "pegar" o jogo, transportar, presentear um amigo, etc. Aqueles pequenos objetos concretos, reais, com arte gráfica digital pioneira e design futurista personalizado, apresentavam-se como produtos de alto valor agregado, e emprestavam credibilidade e importância aos videogames.


Os cartuchos dos consoles transformavam
jogos virtuais em objetos concretos.



A Revolução do Shareware


Com o surgimento dos primeiros shooters, encabeçados por Wolfenstein 3D, Doom e Duke Nukem, difundiu-se o conceito do Shareware, ou seja, de programas "compartilháveis". Eram versões gratuitas dos jogos (e outros softwares em geral), com algumas limitações, distribuídas de graça para conquistar o público. Posteriormente havia o lançamento e a venda da versão oficial, com milhares de fases, inimigos, armas e habilidades que não haviam na primeira.


Versão shareware de DOOM trazia instruções
para adquirir a versão completa
.

Durante muito tempo existiu (e ainda existe) uma ideia de que softwares, arte digital e outros itens virtuais, não tem valor no "mundo real", por serem abstratos e se tratarem apenas de informação. Por esse e outros motivos, o shareware abriu muitas portas para que os jogos de PC fossem compreendidos pelo grande público como produtos de alta qualidade, que valiam a pena ser comprados e usufruídos. Posteriormente, a utilização de embalagens vistosas, posters e camisetas, também fizeram com que os games para PC ganhassem mais visibilidade.

Embora sempre terminassem com um gostinho de "quero mais" - que incluía imagens e vídeos do jogo completo, com promessas de vantagens incríveis - as versões shareware eram produtos acabados, com começo, meio e fim. O primeiro episódio de Duke Nukem garante horas de diversão, passando por cenários urbanos, bases tecnológicas, montanhas, nave alienígena e encontro com o boss. Sem falar em todos os conceitos tecnológicos pioneiros que eram apresentados ao jogador. 

O assombro com as possibilidades que os novíssimos shooters ofereciam aos jogadores acontecia na versão grátis. Quando o consumidor procurava a versão completa ele já sabia o que ia encontrar, e se valia a pena investir no jogo.


Duke Nukem shareware trazia
o primeiro episódio completo.


A Transição para os Demos


Com o sucesso estrondoso e a explosão de vendas causada pelos grandes sucessos da id Software e da 3D Realms, a indústria de games para PC rapidamente começou a se profissionalizar e a enxergar o imenso potencial que esse mercado inexplorado oferecia.

Um dos problemas do shareware é que algumas pessoas se contentavam só com o primeiro episódio. Ou porque não eram tão aficionadas por jogos, ou porque não tinham dinheiro para adquirir a versão completa. E acabavam pirateando ou simplesmente não comprando a versão oficial.

Assim, surgiu a era do demo, ou "jogo demonstração".

O demo, ao contrário do shareware, é um produto inacabado de maneira proposital. Uma versão muito mais reduzida do jogo. A tecnologia e a direção de arte são igualmente apresentadas, mas quando o jogo começa a ficar interessante, subitamente acaba. É o mesmo truque utilizado pela Rede Globo para manter os telespectadores curiosos sobre o próximo capítulo da novela: acabar no clímax!

Assim, movido pela curiosidade e pelo apego criado ao seu novo personagem, os jogadores acabavam comprando jogos que nem eram tão interessantes e muitas vezes não valiam o preço que custavam.

Outro grande problema dos demos era o tamanho. Mesmo que a história tivesse apenas 5% da apresentada no jogo completo, era necessário instalar praticamente toda a engine do jogo. Inclusive frameworks externos como Directx, Java, drives para a placa de vídeo, etc. Isso resultava em arquivos grandes, numa época em que as conexões eram feitas pelo telefone, com modens de 56 Kbps, e que um download simples demorava horas - quando não era interrompido.


Demos de jogos: engine completa com
enredo curto e limitações no gameplay.

Por essas e outras o demo sempre foi malvisto pelos gamers. Era uma maneira meio desonesta de promover os jogos.


O Amadurecimento da Indústria de Games


Paralelamente a isso, duas forças invisíveis começavam a surgir e transformar completamente o mercado de games.

A primeira foi o Youtube. Com a consolidação do serviço dedicado à publicação de vídeos, a análise dos jogos deixou de ser feita exclusivamente através do marketing das empresas. Antes um gamer precisava confiar na propaganda, jogar o demo e se informar com artigos de sites e revistas especializadas. Haviam algumas fotos, e olhe lá.


Gameplay no Youtube: possibilidade de analisar
os jogos 
com mais propriedade, antes de comprar.
 
Através do Youtube foi possível ter uma boa ideia do gameplay, sem ter que efetivamente comprar o jogo. Análises mais profundas começaram a surgir, e a qualidade em geral dos games também foi aperfeiçoada. O mercado de games para PC começava a se estabelecer como uma força poderosa dentro do segmento de cultura e entretenimento.

A segunda força invisível foi a criação da plataforma de games Steam, no começo dos anos 00, que permite que um jogador compre jogos diretamente pela internet, através do cartão de crédito, e tenha para sempre sua coleção guardada em uma biblioteca virtual. Era o começo do que seria conhecido depois como a computação "em nuvem".


Steam: a primeira plataforma eficiente
de compra direta de jogos pela internet. 

Não era uma ideia nova. Muitas empresas já haviam tentado emplacar um sistema de gerenciamento de jogos online, com servidores para games multiplayer e serviços exclusivos para assinantes. A própria 3D Realms havia sido uma das pioneiras ao criar o TEN, ou Total Entertainment Network, que tinha nomes de peso no catálogo, como Duke Nukem 3D, Quake, Diablo, Warcraft, Blood, Command & Conquer, Shadow Warrior, entre outros.


Site do TEN - Total Entertainment Network, em 1997.

O Steam não era diferente, mas se aproveitou de três fatores importantes.

Primeiro, a consolidação do modelo de compras pela internet com cartão de crédito. Até então as pessoas não tinham confiança para comprar produtos e serviços online. Além do medo de serem roubadas através de fraudes, muitos serviços que pareciam ser robustos haviam surgido e desaparecido em poucos anos sem deixar rastros, de forma que era uma idéia arriscada investir em um produto virtual sobre o qual não se tinha nenhum controle ou segurança. Com o passar dos anos o sistema foi se apresentando cada vez mais prático e confiável. Sem falar nos preços mais baixos que os das lojas físicas.
Em segundo lugar, o armazenamento digital. O Steam teve a sabedoria (ou sorte) de ser lançado em um momento em que os primeiros CDs e DVDs começavam a perder a validade. Até então existia um conceito de que essas mídias eram boas formas de backup e armazenamento, principalmente em relação aos disquetes, que eram mais frágeis e continham menos espaço. Porém, com o passar dos anos as pessoas perceberam que os jogos que elas haviam comprado fisicamente em uma loja, acabavam se perdendo mais cedo ou mais tarde: ou porque o CD riscou, ou porque pegou fungos, foi roubado, perdido, etc. Dessa forma o armazenamento remoto (ou "na nuvem") ganhou visibilidade, ao oferecer a segurança de nunca mais perder o produto, bem como a possibilidade de instalar o jogo em qualquer lugar, sem ter que ficar transportando a mídia. Mesmo se o usuário estiver na Indonésia, com uma boa conexão ele pode baixar e instalar seus jogos em qualquer computador, em questão de minutos.
E em terceiro o sucesso de títulos exclusivos para multiplayer, como Quake 3 Arena da id Software, Unreal Tournment da GT Interactive, além de títulos épicos da Valve (criadora do Steam) como Team Fortress, Day of Defeat e principalmente Counter Strike. 


Counter Strike 1.6: jogadores trocavam
o dia pela noite nas lan-houses.

Esse último já havia sido responsável pela popularização das Lan-Houses - que abrigavam dezenas de jogadores ao mesmo tempo - madrugada afora. Com a melhora do equipamento doméstico e das conexões com a internet, os jogadores deixaram de gastar fortunas alugando uma máquina na lan-house para ter (e jogar) os games em casa. E como eram jogos essencialmente multiplayer, não dava para piratear e jogar sozinho: era necessário instalar o Steam e comprar uma cópia oficial do jogo.


Empurrãozinho da Justiça


Outro fator que impulsionou esse processo de transição no Brasil foi a proibição da venda de jogos considerados violentos, como Carmagedon, de 1997, onde o jogador disputava corridas em perímetro urbano e ganhava pontos por atropelar pedestres (com bônus para mortes com mais "estilo").


Carmageddon: chegar em primeiro
não era o objetivo.

Duke Nukem também foi retirado de circulação no país em 1999, quase quatro anos após seu lançamento, depois que o estudante de medicina Mateus da Costa Meira matou três pessoas e feriu outras tantas com uma metralhadora em um cinema de São Paulo. Os advogados de defesa tentaram, em vão, alegar insanidade mental de seu cliente e argumentaram que Mateus havia sido influenciado pelo jogo, no qual há uma cena de tiroteio dentro de um cinema.


Mateus da Costa Meira: surto
psicótico ou ataque planejado?

Em 2008 o juiz federal Carlos Alberto Simões de Tomaz, da 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, mandou recolher todas as cópias do jogo Counter Strike no território nacional, alegando que: "o jogo reproduz a guerra entre bandidos e policiais e impressiona pelo realismo. No vídeo-game, traficantes do Rio de Janeiro seqüestram e levam para um morro três representantes da Organização das Nações Unidas. A polícia invade o local e é recebida a tiros. O participante pode escolher o lado do crime: virar bandido para defender a favela sob seu domínio. Quanto mais PMs matar, mais pontos. A trilha sonora é um funk proibido".


Mapa de Counter Strike retrata favela do Rio de janeiro.

O que é tudo verdade (pelo menos no mapa "cs_rio"), como eu mesmo testemunhei. 

Porém a Eletronic Arts, empresa responsável pelo jogo, deixou bem claro que "itens como traficantes, a cidade do Rio de Janeiro, favela, trilha sonora funk e pontuação extra por matar PMs não fazem parte do jogo original. Estas modificações foram criadas por pessoas que não têm qualquer tipo de ligação ou relacionamento com a empresa e que dispuseram seu download gratuitamente pela internet." 

O que também é tudo verdade.


Mapa criado por brasileiros era bem feito e detalhado.
Trilha sonora tinha funk que incentivava a matar PMs.

Ao retirar esses produtos de circulação em lojas físicas, a justiça acabou fortalecendo o sistema de compra pela internet, através da plataforma da Steam, que não está sujeita às decisões do judiciário brasileiro.


Jogos Sociais


Paralelamente a esse processo, com o surgimento do Orkut e posteriormente do Facebook, novas formas de jogos começaram a aparecer. São os conhecidos "jogos sociais". Com gráficos simples e desenvolvimento para navegadores de internet, exigem que o usuário traga muitos amigos para jogar (entupindo as caixas postais com pedidos de ajuda), em troca de vantagens e melhorias.


Mafia Wars: jogo social muito
popular no início do Facebook.

Jogos com temas femininos também começaram a fazer sucesso, com a presença maciça das mulheres na internet. Antes das redes sociais elas tinham pouco ou nenhum interesse em informática, campo dominado até então predominantemente por homens.


FarmVille ajudou a trazer o público feminino
para o universo dos jogos sociais

Além da receita com publicidade, esses jogos ganhavam dinheiro vendendo "pacotes de energia" - que era limitada e necessária para continuar jogando. Com o tempo verificou-se que muitas pessoas se interessavam em comprar, por pequenas quantias, roupas, itens e outros objetos puramente cosméticos, sem vantagens especiais no gameplay do jogo.

A indústria de jogos havia finalmente conquistado a confiança dos consumidores para vender objetos e produtos puramente virtuais!

Em 23 de Junho de 2011, após desenvolver um sistema de compra, venda e troca de itens (tanto cosméticos quanto funcionais), a Valve anunciou que estava tornando oficialmente grátis - free-to-play - um dos seus maiores títulos, Team Fortress 2, que até então era vendido através do Steam por aproximadamente US$ 50 dentro do pacote Orange Box, ou US$ 20 isoladamente.


Team Fortress 2: primeiro game mainstream
a se tornar Free-to-Play

A adesão ao jogo foi instantânea e explosiva, tornando Team Fortress 2 uma das maiores comunidades de games online da Steam, e o carro chefe da Valve. Diversos outros jogos foram (e continuam sendo) vendidos através de promoções que oferecem como brindes chapéus e itens exclusivos para TF2. Além dos acessórios virtuais vendidos pela empresa, a Valve também disponibilizou ferramentas para jogadores desenvolverem e compartilharem seus próprios mapas, armas e itens, pagando aos seus autores porcentagens em dinheiro da venda desses produtos na loja.

Embora não fosse uma idéia nova, era a primeira vez que um jogo considerado "mainstream" era comercializado no modelo free-to-play. Após nove meses da mudança, a Valve reportou que as receitas obtidas com o jogo haviam aumentado mais de vinte vezes em relação ao modelo anterior onde o game era pago! Em junho de 2013 mais de US$ 10 milhões haviam sido pagos de volta para cerca de 400 membros da comunidade, que haviam contribuído para desenvolver conteúdo para o jogo.


A era do Free-to Play?


Desde então diversos novos títulos vem surgindo nesse modelo gratuito, como Battlefield Heroes, uma versão cartunesca de Battlefield 1945, ou o excelente Marvel Heroes, com jogabilidade praticamente idêntica a Diablo 3, com os super-heróis da Marvel.


Marvel Heroes Online: gráficos ótimos
e excelente jogabilidade de graça!

Com a popularização de dispositivos como smartphones e tablets, também houve um crescimento de jogos e aplicativos feitos por usuários para Android, iOS e Windows Phone, aumentando a oferta de entretenimento grátis (com venda interna de itens e serviços), e reduzindo ainda mais a procura por jogos pagos. 
Com a vantagem de ter custo zero para o consumidor final, esse sistema também contribui para acabar com a farra da pirataria, visto que qualquer um pode baixar e instalar o jogo gratuitamente, de forma oficial. Além de ter um suporte técnico adequado para eventuais problemas que aparecem, o jogador ainda evita a propagação de vírus e malwares, tradicionalmente difundidos através dos cracks - arquivos usados para quebrar a segurança dos jogos pirateados.

Seria o começo da era free-to-play dos jogos para PC? 

Com o mercado de consoles impondo preços cada vez mais inacessíveis para países em desenvolvimento, o modelo gratuito poderia abocanhar uma grande parte do mercado consumidor de games, democratizando assim o acesso aos jogos, aumentando a segurança e a confiabilidade, sem diminuir a qualidade dos produtos.

Aguardem as cenas do próximo capítulo...